"Esta não é a reforma da Previdência de que a gente necessitaria", avalia professora da PUC-SP
Para Rosa Maria Marques, é um erro implantar uma regra geral que não considera as desigualdades de condições dos trabalhadores
Por Caio Cigana
Tema que vai afetar a vida de milhões de trabalhadores nas próximas décadas, a reforma da Previdência enviada para o Congresso pela gestão de Michel Temer ainda deve render muita controvérsia. A previsão do Planalto é de que os parlamentares terminem de votar a proposta até o final do terceiro trimestre deste ano. As modificações nas regras das aposentadorias são consideradas essenciais pelo governo para o equilíbrio das contas públicas no futuro devido ao envelhecimento da população brasileira.
A proposta, entretanto, também é alvo de uma série de críticas. Especialista no tema, Rosa Maria Marques, professora titular do Departamento de Economia e do Programa de Estudos Pós-graduados em Economia Política da PUC-SP e ex-presidente da Sociedade Brasileira de Economia Política (SEP), é uma das vozes contrárias ao conteúdo.
Para Rosa, é um erro implantar uma regra geral que não considera as desigualdades de condições dos trabalhadores do Brasil. Outro problema apontado pela economista é o foco excessivamente centrado na diminuição dos gastos, sem pensar uma forma de ampliar a base de arrecadação. Trabalhadores com maior renda, avalia ela, garantirão a tranquilidade na aposentadoria com a previdência privada. Os menos abastados, por outro lado, sofrerão mais as consequências da reforma.
A reforma da Previdência, da forma como está sendo proposta, é dura demais, ou justa e necessária?
Não é a reforma de que a gente necessitaria. Porque o nosso sistema previdenciário, em razão das particularidades do Brasil, do nosso mercado de trabalho, não é uma proteção social comparável à de outros países, porque deixa 50% da força de trabalho de fora. Se fosse para fazer uma reforma no sentido de ampliar a proteção social, teríamos de construir um outro desenho que não tivesse, necessariamente, como fonte de financiamento a contribuição dos salários junto ao mercado formal. Ela é dura porque modifica muito em relação ao sistema atual.
O que está sendo proposto é uma reforma comparável ao que a ditadura fez nos anos 1970, quando unificou os institutos e criou o regime geral. Antes, tinha as caixas, depois os institutos e cada um concedia uma série de benefícios, inclusive com serviços à saúde, que tinha a ver com a capacidade de organização e arrecadação de cada grupo de trabalhadores. A ditadura acaba com isso e unifica. Agora, se propõe algo no sentido da harmonização entre os diversos regimes. Começam a desaparecer as diferenças entre o trabalhador do mercado formal, coberto pelo regime geral, e os regimes próprios de servidores.
Isso é ruim?
É um problema porque você está tratando de maneira igual o trabalhador do setor privado e do setor público. Se estivermos atentos à ideia do servidor público enquanto "servidor", lá dos primórdios da formação do Estado, havia um sentido de diferenciação exatamente para ele não ficar sujeito às mazelas da economia, a ser demitido a qualquer momento. Ele teria uma renda garantida durante toda a sua vida, ativa e inativa.
Agora, simplesmente se diz que é tudo igual, que a atividade pública é igual à privada. Há toda uma discussão de Estado por trás da proposta. Os servidores em 2003 perderam a integralidade, mas perderam aqueles que passaram a entrar. O que é proposto agora é diferente. Há aquele critério de idade, de 50 anos para homens e para 45 mulher, mas todos os demais entram em uma nova regra.
Como avalia a idade mínima?
De fato, a população brasileira está envelhecendo e em uma velocidade maior do que em outros países. Mas isso é normal. Se fôssemos olhar apenas por aí, teríamos todas as justificativas para estabelecer um critério de idade pesado. Antes da fórmula 85/95, estavam se aposentado em média com 54 anos, mesmo com o fator. O que está sendo proposto é um aumento de 11 anos. O problema é que o Brasil não pode ser comparado com outros países, por ser muito desigual.
Quando propõem que o trabalhador rural acompanhe o urbano, se pressupõe que as condições de trabalho e de vida são iguais. Da mesma forma, homens e mulheres. A maioria das mulheres tem dupla jornada de trabalho. É uma proposta sem olhar para qual povo será aplicada. E a ênfase está na redução da despesa, e não no aumento da receita, embora tenha uma mudança, com as exportações passando a contribuir. A proposta vai no sentido mais fácil. O que deveria ser feito é um novo arranjo de financiamento, como ocorre em alguns países — era sobre a contribuição dos salários e passa a ser mais sobre a renda. Do jeito que está sendo feito, quem vai pagar a conta são os trabalhadores.
Para se aposentar com o benefício integral, seria preciso ter 49 anos de contribuição. Muitos terão de trabalhar com mais de 70. Como vê essa questão?Essa mudança de regra proposta vai afetar, excluindo quem ganha um salário mínimo, muitas pessoas. Porque vis a vis com a regra atual, que é a fórmula 85/95, piora muito o benefício médio recebido. Em relação ao fator, não altera tanto. Mas o proposto é um pouco pior que o fator. E a consequência disso é que determinado setor dos trabalhadores vai ser incentivado a complementar a sua aposentadoria mediante a previdência privada. Não todos, mas os trabalhadores com maior renda.
Terão de se aposentar antes, com benefício menor?
Sim, com benefício menor, e alguns casos vão entrar na previdência privada. Essa proposta é extremamente favorável aos fundos de pensão abertos.
Qual seria a saída para reverter o déficit da Previdência, se é que a senhora entende que existe déficit, ou para fazer o sistema ser sustentável?
Essa questão é muito polêmica porque, do ponto de vista da Constituição de 1988, não posso analisar a Previdência isoladamente. Ela faz parte da seguridade social, que é superavitária. Receitas maiores do que despesas. Na seguridade social estão previdência, assistência, saúde. Só que não é mais assim que é visto desde a Lei de Responsabilidade Fiscal, que analisa a Previdência isoladamente. E aí surge déficit. De fato, estamos vivendo mais. Então, temos de mudar a forma de financiamento. E insisto: que não se fundamente apenas sobre a taxação do trabalho. Por que não entrar o financeiro, que é a grande fonte de enriquecimento do capitalismo contemporâneo?
De que fontes, por exemplo?
Os fluxos de capital vinculados a títulos públicos ou de empresas, de ações, derivativos. Hoje, o volume desse capital corresponde a 10 vezes o PIB mundial. E no Brasil é bastante expressivo também. No caso da renda, temos a experiência francesa. Mas a proposta de que o financeiro também financie não é minha. É uma discussão europeia. Mas isso só seria possível por meio de um arranjo nacional. E é claro que esses setores não querem financiar. Por isso optaram pela despesa. Imagina propor aumento de imposto agora?
Quais as chances da proposta passar no Congresso da forma que está?
Acho que será aprovada. Mas é claro que, passando pelo Congresso, algumas modificações deverão ser feitas. Centrais sindicais, mesmo as que apoiam o governo Temer, têm dito que 65 anos não dá. Então, se alguma modificação vai ocorrer, é por aí. Mas será muito pequena. Porque, senão, desestrutura o desenho que fizeram. Talvez uma pequena diferença entre homem e mulher.
Fonte: Zero Hora